Bocão: o menino ‘forte, grande e burro’ que alcançou um raro sucesso triplo em grand slams

A história de Marcus Vinicius Barbosa não tem nada de típica no cenário do tênis brasileiro. O menino que um dia foi avaliado por Larri Passos como “forte, grande e burro” e hoje conta essa história com um sorriso no rosto, tornou-se um tenista de destaque e um treinador dos mais respeitados no país. Lado a lado com o técnico gaúcho, Bocão formou um currículo com resultados grandes – e únicos – em slams. Como juvenil, foi semifinalista de Wimbledon em 1987. Como técnico no profissional, viu André Sá alcançar as quartas de final no All England Club em 2002. Depois em 2010, estava no box quando Tiago Fernandes conquistou o Australian Open juvenil.

O catarinense de 50 anos, cujo apelido vem tanto do seu apreço por bate-papos quanto pelo tamanho dos lábios, também tem para chamar de sua uma lesão com uma história tão rara quanto seu currículo. Três cirurgias, três anos de fisioterapia e tentativas de retorno ao esporte, saúde mental abalada, e uma explicação que só veio à tona depois de sessões com uma psicóloga.

As histórias de Bocão são muitas e muito boas. Elas ganham vida com seu jeito próprio e nada filtrado de contá-las e ajudam a ilustrar não só o perfil do treinador mas também os motivos de alguns de seus triunfos dentro e fora de quadra. As melhores estão nas linhas a seguir.

Seu grande desenvolvimento como juvenil foi treinando com o Larri, não?

Uma das pessoas mais importantes… O pouco que eu fiz no tênis foi porque aquela pessoa me cativou, me levou para o tênis, que foi o Ademar Fumagalli, professor do clube naquela época. Não só encantou e me fez jogar como também soube a hora de soltar. Ele virou para o meu pai e disse: “Tudo que eu tinha para ensinar para o teu filho eu já ensinei. Agora tu tens que procurar outra pessoa.” E aí meu pai começou a procurar efetivamente um outro treinador. Os Brasileirões eram sempre jogados em Brasília, e em um desses, meu pai, que ia sempre levar a equipe de Santa Catarina – meu pai morreu muito cedo, com 54 anos. Eu não tenho essa lembrança, mas a minha mãe conta que meu pai chegava todos dias muito cedo no clube e ficava de olho nos treinadores. E tinha um cara que estava todo dia de manhã lá nas últimas quadras com um grupo de jogadores da mesma idade que a minha. Um dia meu pai toma coragem, chega para o Larri – e ninguém sabia quem era o Larri, obviamente – e pergunta se poderia botar o filho junto e ver o que ele achava. Hoje em dia, cada vez que um pai me aborda procurando algo para a evolução do filho, eu me transporto para esse momento.

E aí veio aquela frase famosa…

A fala da minha mãe é muito engraçada porque o Larri me bota dentro da quadra. Eu sou sincero em dizer que não tenho nenhuma memória disso, mas a minha mãe conta. O Larri bateu bola comigo, meu pai foi perguntar, e o Larri: “O guri é forte, tchê. É grande. Bate forte na bola! Mas não sabe se mexer muito e parece ser bem burro para jogar.” (risos). O meu pai virou e disse: “Faço o quê?” “Não. Nessa vida, treinando, tudo se melhora, tchê.” Minha mãe conta que naquela frase o Larri ganhou o meu pai. Até os meus filhos, hoje, morrem de rir quando ouvem essa história porque eles conhecem o “tio Larri”. E aí foi onde começou o relacionamento. O Larri ia a cada 15 dias mais ou menos para Brusque, me treinava sexta, sábado e domingo e deixava um programa para o meu professor, o Fumagalli.

Você foi morar com o Larri aos 12 anos e com 16 você fez a semi de Wimbledon. O que lembra desse torneio?

Hoje eu estou mais calmo, com 50, mas eu tinha uma personalidade bastante forte. O Larri sempre teve o gênio dele muito forte, e a gente se desentendia bastante. E um dos grandes desentendimentos foi na semana anterior a Wimbledon. O Sylvio [Bastos] estava lá com os jogadores dele e me deu um apoio muito grande. Depois, durante o torneio, a gente reatou, eu e o Larri. Eu tenho claro na minha memória, para te ser bem sincero, eu vejo que as pessoas falam muito mais hoje. Todo mundo quando vai me apresentar fala “O Bocão, não sei o quê”, e os mais novos cagam e andam. Aí alguém diz “mas ele fez semifinal de Wimbledon juvenil”, e aí a gurizada vira, abre o olho e quer saber quem é. Mas naquela época, a gente ia e fazia, não tinha muita noção. Quando a gente voltou, eu comecei a ganhar wild card para Challengers, mas essa passagem do juvenil para o profissional foi muito rápida, tanto é que veio a lesão depois.

Quando?

Eu volto de Wimbledon, ganho um wild card para Campos de Jordão, jogo na primeira rodada com o Fernandão [Fernando Roese] e ali começa o profissional. No outro ano, com 17, eu comecei a sentir um pouco mais de dor. Culminou no fim do ano, em 1988.

Você operou duas vezes na França, uma vez no Brasil e continuava sentindo dor depois de “curado”. As pessoas não têm noção do que aconteceu e na época não se falava em saúde mental, né?

Eu me lembro de algumas cenas assim em que eu sentava na frente do mar, em Balneário Camboriú… e nessa época o Jaime [Oncins] já estava jogando bem, o Fino [Fernando Meligeni] jogando bem, todo mundo evoluindo e eu ali, fodido naquilo que eu queria fazer. Aquilo me deixava muito chateado. Eu falava “Por que comigo? Eu fazia tudo certo!” Não vou te dizer que estava com depressão, mas lembro que umas duas ou três vezes, eu olhava para a merda daquele mar e pensava “Foda-se. Não consigo fazer o que eu quero, vou sair nadando aqui e vou embora.” Mas no outro dia, tudo bem. Segue a rotina. Mas que não foi legal, não foi.

E foram três cirurgias até aquela conversa com a psicóloga em que ela disse que você estava se sabotando. Como foi isso?

Ela nem sequer era psicóloga esportiva. Acho que naquela época não tinha isso. Um dia, ela vira pra mim e fala “Eu sei por que tu não consegue voltar a jogar. É porque tu tem medo de voltar a jogar.” A sorte dela é que eu estava sentado numa poltrona. Se eu estivesse numa cadeira, eu não estaria hoje falando contigo. Estaria cumprindo pena por homicídio. Eu teria arrancado a cabeça dela fora. “A senhora está louca. Estou há três anos tentando voltar a jogar tênis, e a senhora diz que eu tenho medo?” Ela: “Tu, não. O teu inconsciente. Alguma parte de ti te protege da tua frustração.” Aí ela pega uma caixa com algumas reportagens. “Todas elas falam como se tu poderia, se tu eras, se tu pudesse ter sido… Para ti, é muito mais fácil ser reconhecido como um coitadinho que poderia ter sido do que realmente enfrentar e te frustrar. Fisiologicamente, tu já estás bem. Curado.”

E como foi que você deu razão à psicóloga?

Ela falou para eu fazer o processo de recuperação, que era parar, usar a tala e recuperar. “Só que eu não quero que tu tires a tala para nada. E quero que tu te inscrevas em um torneio daqui a um tempo. Três semanas, um mês ou o tempo que for que tu vais ter certeza que tu não fizesse nada com o braço. E nós vamos ver como vai se comportar isso. Simples. Cumpre essa linha.” Daí me inscrevi num torneio de prize money em Santa Catarina. Faltavam 4-5 semanas. Fiz tudo certinho. Fiquei o mês inteiro com a tala, como se fosse gesso mesmo. O torneio começava numa quinta. Na segunda-feira, eu achei que minha mão estava formigando. Na terça, eu achei que estava com dor. Na quarta, eu não conseguia segurar um copo de água de tanto que doía. E eu falei para ela: “Desculpa, a senhora tinha razão.” Ela disse: “Isso é o teu interior te boicotando. Agora vamos começar o tratamento.” Eu: “Não, senhora. Agora quem vai começar o tratamento sou eu. Na porrada agora.” “O que tu vai fazer?” “Vou jogar o torneio. A senhora não está dizendo que o problema não é o torneio? Vou matar o problema na saída já. Vou jogar.” Joguei o torneio. E a partir dali voltei a competir de novo.

E a dor passou? Ou você conseguia jogar assim?

Doía para caralho, mas eu não dava mais bola. Foi um processo de meses até recuperar. Fiz três milhões e meio de coisas e chegou num momento que veio um lado sempre de dúvida. Eu voltei a jogar dupla razoavelmente legal nos Challengers, mas chegou um momento em que eu falei “se for para ficar jogando dupla nesse nível, eu não quero.” Aí decidi parar e falei “vou continuar no tênis, mas de outra maneira. Decidi ser treinador e segui nessa vida.”

Qual foi a primeira grande lição que você aprendeu como técnico?

Eu não era técnico ainda. Eu estava na busca por uma solução para a minha lesão e fui consultar o médico em Paris na época de Roland Garros. O Erik Bergelin, meu agente, me leva para ver uma partida de Lendl e McEnroe na quadra central. Quando eu chego no box está o Lennart Bergelin, pai dele e treinador do Borg. Em algum momento, eu pensei “preciso fazer uma pergunta inteligente para esse cara e o que meio à cabeça foi assim: como o senhor vê o tênis?” Ele disse: “Para mim, o tênis é uma mistura de boxe e xadrez em movimento.” Obviamente, não entendi patavinas do que ele falou. Quando ele saiu, eu perguntei para o Erik. “Eu sempre escuto o pai falar aquilo. É que o boxe, por mais estranho que pareça para ti, não é pela força física, mas pela parte mental. No boxe, tu tens que ter muita capacidade de absorver os golpes do teu adversário para não ir a nocaute. Cada jab, cada soco na linha de cintura, cada movimento daquilo é como os pontos. Você perde um 15/0, não faz muita diferença. Mas se tu perder outro 15, começa a piorar. E se for a 40, fica feio. Se tu te desconcentrar, tu toma uma porrada e pode ir a knockdown. Falando numa linguagem moderna, é a resiliência a cada ponto. Hoje, como treinador, eu entendo. E o xadrez é muito óbvio. É tu antecipar as jogadas. É como tu vais preparar as jogadas.

Em 2002, o André Sá faz quartas em Wimbledon com você como treinador. O que deu certo nessa relação para isso acontecer?

Estar com o André… o primeiro ano foi de muito aprendizado. Ele já era respeitado no circuito, e a gente foi evoluindo. Existem momentos marcantes, mas foi uma junção de coisas. O [Carlos Alberto] Kirmayr um dia veio depois de um treino, me chamou, deu parabéns e disse: “O André antes se movimentava no saibro como jogador de quadra dura, e tu tá começando a fazer ele se mexer de uma forma diferente, não tão retilíneo. Ele está indo um pouco para trás, jogando uma bola um pouco mais de saibro.” E o André começa a jogar bem. Ele ganha do Fino no fim do ano [2001], no saibro. No ano seguinte, o André passa o quali de Monte Carlo [ganhando de Gastón Gaudio no quali]. A gente começa a ter resultado em saibro.

Tem uma história boa sobre alpinismo com o Larri e o André, né?

A gente vai para Queen’s [em 2001], e o André estava jogando contra o Paradorn Srichapan, o tailandês que foi top 10. O André teve chance, mas ele perde aquele jogo. Eu: “Puta que pariu, que merda! Vou ligar para o Larri.” E o Larri me fala assim: “Bocão, tenha calma. Tu tens que aplicar a tática do alpinista.” Obviamente, a minha vontade de novo era mandar ele à merda, como eu sempre fazia. Aí eu disse: “Tá, Larri, o que é a tática do alpinista, caralho?” Ele disse: “Bocão, o alpinista tem o tempo certo para escalar a montanha. Se ele subir muito rápido e não respeitar os acampamentos e as adaptações [à altitude], ele vai morrer porque o corpo dele não se adaptou. Se ele for muito devagar, ele também vai morrer porque vai perder a janela de tempo, pode vir uma tempestade. Então as coisas têm que ser feitas com calma, programação e no tempo certo. É assim que um alpinista consegue escalar uma montanha. E eu fui dormir com aquilo. No outro dia, fomos, trabalhamos, fizemos. E um ano depois acontece Wimbledon. As coisas se encaixando, entrando no lugar. É uma superfície em que o André adora jogar, ele se sente bem.

E depois teve uma experiência com o Tiago Fernandes, que treinava com vocês lá no Larri, mas era você quem estava com ele em Melbourne quando ele foi campeão do Australian Open. O que te marcou mais nesse título?

O jogador que tem aquela coisa diferenciada gosta de ser desafiado, tem que gostar do desafio. Quando comecei a viajar com o Tiago, ele tinha um ranking juvenil e tinha na frente dele, por exemplo, 200 jogadores da idade dele ou mais novos. Eu peguei uma folha de papel e coloquei cada jogador que tinha a mesma idade e que estava na frente dele. “Se tu acha que joga muito bem tênis, olha o desafio que tu tens aqui. Dezenas e dezenas de jogadores pelo mundo que têm um ranking melhor do que o teu.” E isso criou um desafio. Cada vez que ele jogava uma semana e subia no ranking, ele vinha e me dizia “Agora só tem mais 180” ou “agora só tem mais 150”. E assim a gente se desafiava. O fim de 2009 foi péssimo. Orange Bowl, Eddie Herr… péssimos. A gente vai para a Austrália, que tem um torneio só antes do Australian Open juvenil, que é em Traralgon. O Tiago já perde na segunda rodada. Pensei “a única coisa que me resta é botar esse cara na quadra e treinar, treinar, treinar”. E a gente treinava até na chuva. No primeiro dia, ele ficou puto da cara comigo porque eu falei para continuar quando começou a chover. “Treinar devolução de saque na chuva é muito bom, cara. A bola vem mais rápido, tu abaixa tuas pernas!” Sei lá, inventava qualquer bruxaria ali, mas não tirava o cara da quadra. Botava pra jogar com um, botava pra jogar com outro. Aí vamos para Melbourne. Primeira rodada, uma dificuldade, jogando mal, a bola não andava… Foi um terror, mas ele passa a primeira rodada. E ele foi crescendo durante o torneio, pegando confiança. Das quartas de final para a frente, com uma boa parte da confiança recuperada, desempenhando bem. Aí ganha o torneio e quando ele sobe na arquibancada, ele me dá um abraço e fala duas coisas na minha orelha: “Cara, treinar na chuva dá uma sorte, né? E não tem mais ninguém na minha frente.”

Faz sentido (risos)

Eu tinha certeza que ele ia falar isso. Aí acaba, vou pro vestiário, ele vem com o troféu, me dá um abraço, comemora estar na frente do ranking e tal… Eu abro meu iPad – já tinha deixado preparado – na última página do ranking da ATP. Não lembro exatamente quantos tinham lá empatados, mas era uma porrada de gente. Eu mostro pra ele e falo assim: “A fase de estudo acabou. Começa a pedir emprego aqui. Só tem 5 mil candidatos na minha frente.” Ele: “Porra, tu não vai cansar nunca?” No outro dia, eu estava 8h30min no café, ele chega todo arrumadinho e pergunta: “e aí, onde é que nós vamos treinar?” Foi uma semana bastante interessante. Para mim, mostrou o quanto e possível você não estar bem, mas saber das suas capacidades ou saber das capacidades do seu atleta e tentar tirar isso dele. É uma das grandes lições que ficaram para mim nessa campanha.

Qual a parte mais legal de ser técnico?

Acho que é passar informação. Lari me disse uma vez que o dia que eu estiver dentro de uma quadra de tênis passando informação para alguém e esse alguém executar aquilo e eu não me arrepiar, está na hora de parar. Isso é um teste que eu faço sempre. Ainda não parei de me arrepiar. Para mim, o mais legal é isso. Um dia, num café da manhã, o Felipe [Fonseca], do Daqui Pra Fora, vira para mim e diz: “Bocão, qual que é a tua profissão?” Eu: “Treinador de tênis?” Ele: “Não”. Eu: “Técnico de tênis?” “Não.” “Professor de tênis?” “Não.” “Então tô mal cotado contigo, mas rebatedor, então?” “Não.” “Boleiro? Não sei o que tu quer dizer!” Ele: “Bocão, nunca te esquece que tu és um educador e através do tênis, se tu for trabalhar com juvenis, tu estás educando eles para o futuro. E quando tu estás trabalhando com um profissional, tu também estás educando esse profissional a ter melhores rotinas e alcançar o melhor dele. Tu és um educador. Essa é a tua profissão.” E a partir daquele momento eu adotei isso, essa nomenclatura. Agora eu te repito isso: “O que eu mais gosto é de ser educador.”

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Bocão: o menino ‘forte, grande e burro’ que alcançou um raro sucesso triplo em grand slams

A história de Marcus Vinicius Barbosa não tem nada de típica no cenário do tênis brasileiro. O menino que um dia foi avaliado por Larri Passos como “forte, grande e burro” e hoje conta essa história com um sorriso no rosto, tornou-se um tenista de destaque e um treinador dos mais respeitados no país. Lado a lado com o técnico gaúcho, Bocão formou um currículo com resultados grandes – e únicos – em slams. Como juvenil, foi semifinalista de Wimbledon em 1987. Como técnico no profissional, viu André Sá alcançar as quartas de final no All England Club em 2002. Depois em 2010, estava no box quando Tiago Fernandes conquistou o Australian Open juvenil.

O catarinense de 50 anos, cujo apelido vem tanto do seu apreço por bate-papos quanto pelo tamanho dos lábios, também tem para chamar de sua uma lesão com uma história tão rara quanto seu currículo. Três cirurgias, três anos de fisioterapia e tentativas de retorno ao esporte, saúde mental abalada, e uma explicação que só veio à tona depois de sessões com uma psicóloga.

As histórias de Bocão são muitas e muito boas. Elas ganham vida com seu jeito próprio e nada filtrado de contá-las e ajudam a ilustrar não só o perfil do treinador mas também os motivos de alguns de seus triunfos dentro e fora de quadra. As melhores estão nas linhas a seguir.

Seu grande desenvolvimento como juvenil foi treinando com o Larri, não?

Uma das pessoas mais importantes… O pouco que eu fiz no tênis foi porque aquela pessoa me cativou, me levou para o tênis, que foi o Ademar Fumagalli, professor do clube naquela época. Não só encantou e me fez jogar como também soube a hora de soltar. Ele virou para o meu pai e disse: “Tudo que eu tinha para ensinar para o teu filho eu já ensinei. Agora tu tens que procurar outra pessoa.” E aí meu pai começou a procurar efetivamente um outro treinador. Os Brasileirões eram sempre jogados em Brasília, e em um desses, meu pai, que ia sempre levar a equipe de Santa Catarina – meu pai morreu muito cedo, com 54 anos. Eu não tenho essa lembrança, mas a minha mãe conta que meu pai chegava todos dias muito cedo no clube e ficava de olho nos treinadores. E tinha um cara que estava todo dia de manhã lá nas últimas quadras com um grupo de jogadores da mesma idade que a minha. Um dia meu pai toma coragem, chega para o Larri – e ninguém sabia quem era o Larri, obviamente – e pergunta se poderia botar o filho junto e ver o que ele achava. Hoje em dia, cada vez que um pai me aborda procurando algo para a evolução do filho, eu me transporto para esse momento.

E aí veio aquela frase famosa…

A fala da minha mãe é muito engraçada porque o Larri me bota dentro da quadra. Eu sou sincero em dizer que não tenho nenhuma memória disso, mas a minha mãe conta. O Larri bateu bola comigo, meu pai foi perguntar, e o Larri: “O guri é forte, tchê. É grande. Bate forte na bola! Mas não sabe se mexer muito e parece ser bem burro para jogar.” (risos). O meu pai virou e disse: “Faço o quê?” “Não. Nessa vida, treinando, tudo se melhora, tchê.” Minha mãe conta que naquela frase o Larri ganhou o meu pai. Até os meus filhos, hoje, morrem de rir quando ouvem essa história porque eles conhecem o “tio Larri”. E aí foi onde começou o relacionamento. O Larri ia a cada 15 dias mais ou menos para Brusque, me treinava sexta, sábado e domingo e deixava um programa para o meu professor, o Fumagalli.

Você foi morar com o Larri aos 12 anos e com 16 você fez a semi de Wimbledon. O que lembra desse torneio?

Hoje eu estou mais calmo, com 50, mas eu tinha uma personalidade bastante forte. O Larri sempre teve o gênio dele muito forte, e a gente se desentendia bastante. E um dos grandes desentendimentos foi na semana anterior a Wimbledon. O Sylvio [Bastos] estava lá com os jogadores dele e me deu um apoio muito grande. Depois, durante o torneio, a gente reatou, eu e o Larri. Eu tenho claro na minha memória, para te ser bem sincero, eu vejo que as pessoas falam muito mais hoje. Todo mundo quando vai me apresentar fala “O Bocão, não sei o quê”, e os mais novos cagam e andam. Aí alguém diz “mas ele fez semifinal de Wimbledon juvenil”, e aí a gurizada vira, abre o olho e quer saber quem é. Mas naquela época, a gente ia e fazia, não tinha muita noção. Quando a gente voltou, eu comecei a ganhar wild card para Challengers, mas essa passagem do juvenil para o profissional foi muito rápida, tanto é que veio a lesão depois.

Quando?

Eu volto de Wimbledon, ganho um wild card para Campos de Jordão, jogo na primeira rodada com o Fernandão [Fernando Roese] e ali começa o profissional. No outro ano, com 17, eu comecei a sentir um pouco mais de dor. Culminou no fim do ano, em 1988.

Você operou duas vezes na França, uma vez no Brasil e continuava sentindo dor depois de “curado”. As pessoas não têm noção do que aconteceu e na época não se falava em saúde mental, né?

Eu me lembro de algumas cenas assim em que eu sentava na frente do mar, em Balneário Camboriú… e nessa época o Jaime [Oncins] já estava jogando bem, o Fino [Fernando Meligeni] jogando bem, todo mundo evoluindo e eu ali, fodido naquilo que eu queria fazer. Aquilo me deixava muito chateado. Eu falava “Por que comigo? Eu fazia tudo certo!” Não vou te dizer que estava com depressão, mas lembro que umas duas ou três vezes, eu olhava para a merda daquele mar e pensava “Foda-se. Não consigo fazer o que eu quero, vou sair nadando aqui e vou embora.” Mas no outro dia, tudo bem. Segue a rotina. Mas que não foi legal, não foi.

E foram três cirurgias até aquela conversa com a psicóloga em que ela disse que você estava se sabotando. Como foi isso?

Ela nem sequer era psicóloga esportiva. Acho que naquela época não tinha isso. Um dia, ela vira pra mim e fala “Eu sei por que tu não consegue voltar a jogar. É porque tu tem medo de voltar a jogar.” A sorte dela é que eu estava sentado numa poltrona. Se eu estivesse numa cadeira, eu não estaria hoje falando contigo. Estaria cumprindo pena por homicídio. Eu teria arrancado a cabeça dela fora. “A senhora está louca. Estou há três anos tentando voltar a jogar tênis, e a senhora diz que eu tenho medo?” Ela: “Tu, não. O teu inconsciente. Alguma parte de ti te protege da tua frustração.” Aí ela pega uma caixa com algumas reportagens. “Todas elas falam como se tu poderia, se tu eras, se tu pudesse ter sido… Para ti, é muito mais fácil ser reconhecido como um coitadinho que poderia ter sido do que realmente enfrentar e te frustrar. Fisiologicamente, tu já estás bem. Curado.”

E como foi que você deu razão à psicóloga?

Ela falou para eu fazer o processo de recuperação, que era parar, usar a tala e recuperar. “Só que eu não quero que tu tires a tala para nada. E quero que tu te inscrevas em um torneio daqui a um tempo. Três semanas, um mês ou o tempo que for que tu vais ter certeza que tu não fizesse nada com o braço. E nós vamos ver como vai se comportar isso. Simples. Cumpre essa linha.” Daí me inscrevi num torneio de prize money em Santa Catarina. Faltavam 4-5 semanas. Fiz tudo certinho. Fiquei o mês inteiro com a tala, como se fosse gesso mesmo. O torneio começava numa quinta. Na segunda-feira, eu achei que minha mão estava formigando. Na terça, eu achei que estava com dor. Na quarta, eu não conseguia segurar um copo de água de tanto que doía. E eu falei para ela: “Desculpa, a senhora tinha razão.” Ela disse: “Isso é o teu interior te boicotando. Agora vamos começar o tratamento.” Eu: “Não, senhora. Agora quem vai começar o tratamento sou eu. Na porrada agora.” “O que tu vai fazer?” “Vou jogar o torneio. A senhora não está dizendo que o problema não é o torneio? Vou matar o problema na saída já. Vou jogar.” Joguei o torneio. E a partir dali voltei a competir de novo.

E a dor passou? Ou você conseguia jogar assim?

Doía para caralho, mas eu não dava mais bola. Foi um processo de meses até recuperar. Fiz três milhões e meio de coisas e chegou num momento que veio um lado sempre de dúvida. Eu voltei a jogar dupla razoavelmente legal nos Challengers, mas chegou um momento em que eu falei “se for para ficar jogando dupla nesse nível, eu não quero.” Aí decidi parar e falei “vou continuar no tênis, mas de outra maneira. Decidi ser treinador e segui nessa vida.”

Qual foi a primeira grande lição que você aprendeu como técnico?

Eu não era técnico ainda. Eu estava na busca por uma solução para a minha lesão e fui consultar o médico em Paris na época de Roland Garros. O Erik Bergelin, meu agente, me leva para ver uma partida de Lendl e McEnroe na quadra central. Quando eu chego no box está o Lennart Bergelin, pai dele e treinador do Borg. Em algum momento, eu pensei “preciso fazer uma pergunta inteligente para esse cara e o que meio à cabeça foi assim: como o senhor vê o tênis?” Ele disse: “Para mim, o tênis é uma mistura de boxe e xadrez em movimento.” Obviamente, não entendi patavinas do que ele falou. Quando ele saiu, eu perguntei para o Erik. “Eu sempre escuto o pai falar aquilo. É que o boxe, por mais estranho que pareça para ti, não é pela força física, mas pela parte mental. No boxe, tu tens que ter muita capacidade de absorver os golpes do teu adversário para não ir a nocaute. Cada jab, cada soco na linha de cintura, cada movimento daquilo é como os pontos. Você perde um 15/0, não faz muita diferença. Mas se tu perder outro 15, começa a piorar. E se for a 40, fica feio. Se tu te desconcentrar, tu toma uma porrada e pode ir a knockdown. Falando numa linguagem moderna, é a resiliência a cada ponto. Hoje, como treinador, eu entendo. E o xadrez é muito óbvio. É tu antecipar as jogadas. É como tu vais preparar as jogadas.

Em 2002, o André Sá faz quartas em Wimbledon com você como treinador. O que deu certo nessa relação para isso acontecer?

Estar com o André… o primeiro ano foi de muito aprendizado. Ele já era respeitado no circuito, e a gente foi evoluindo. Existem momentos marcantes, mas foi uma junção de coisas. O [Carlos Alberto] Kirmayr um dia veio depois de um treino, me chamou, deu parabéns e disse: “O André antes se movimentava no saibro como jogador de quadra dura, e tu tá começando a fazer ele se mexer de uma forma diferente, não tão retilíneo. Ele está indo um pouco para trás, jogando uma bola um pouco mais de saibro.” E o André começa a jogar bem. Ele ganha do Fino no fim do ano [2001], no saibro. No ano seguinte, o André passa o quali de Monte Carlo [ganhando de Gastón Gaudio no quali]. A gente começa a ter resultado em saibro.

Tem uma história boa sobre alpinismo com o Larri e o André, né?

A gente vai para Queen’s [em 2001], e o André estava jogando contra o Paradorn Srichapan, o tailandês que foi top 10. O André teve chance, mas ele perde aquele jogo. Eu: “Puta que pariu, que merda! Vou ligar para o Larri.” E o Larri me fala assim: “Bocão, tenha calma. Tu tens que aplicar a tática do alpinista.” Obviamente, a minha vontade de novo era mandar ele à merda, como eu sempre fazia. Aí eu disse: “Tá, Larri, o que é a tática do alpinista, caralho?” Ele disse: “Bocão, o alpinista tem o tempo certo para escalar a montanha. Se ele subir muito rápido e não respeitar os acampamentos e as adaptações [à altitude], ele vai morrer porque o corpo dele não se adaptou. Se ele for muito devagar, ele também vai morrer porque vai perder a janela de tempo, pode vir uma tempestade. Então as coisas têm que ser feitas com calma, programação e no tempo certo. É assim que um alpinista consegue escalar uma montanha. E eu fui dormir com aquilo. No outro dia, fomos, trabalhamos, fizemos. E um ano depois acontece Wimbledon. As coisas se encaixando, entrando no lugar. É uma superfície em que o André adora jogar, ele se sente bem.

E depois teve uma experiência com o Tiago Fernandes, que treinava com vocês lá no Larri, mas era você quem estava com ele em Melbourne quando ele foi campeão do Australian Open. O que te marcou mais nesse título?

O jogador que tem aquela coisa diferenciada gosta de ser desafiado, tem que gostar do desafio. Quando comecei a viajar com o Tiago, ele tinha um ranking juvenil e tinha na frente dele, por exemplo, 200 jogadores da idade dele ou mais novos. Eu peguei uma folha de papel e coloquei cada jogador que tinha a mesma idade e que estava na frente dele. “Se tu acha que joga muito bem tênis, olha o desafio que tu tens aqui. Dezenas e dezenas de jogadores pelo mundo que têm um ranking melhor do que o teu.” E isso criou um desafio. Cada vez que ele jogava uma semana e subia no ranking, ele vinha e me dizia “Agora só tem mais 180” ou “agora só tem mais 150”. E assim a gente se desafiava. O fim de 2009 foi péssimo. Orange Bowl, Eddie Herr… péssimos. A gente vai para a Austrália, que tem um torneio só antes do Australian Open juvenil, que é em Traralgon. O Tiago já perde na segunda rodada. Pensei “a única coisa que me resta é botar esse cara na quadra e treinar, treinar, treinar”. E a gente treinava até na chuva. No primeiro dia, ele ficou puto da cara comigo porque eu falei para continuar quando começou a chover. “Treinar devolução de saque na chuva é muito bom, cara. A bola vem mais rápido, tu abaixa tuas pernas!” Sei lá, inventava qualquer bruxaria ali, mas não tirava o cara da quadra. Botava pra jogar com um, botava pra jogar com outro. Aí vamos para Melbourne. Primeira rodada, uma dificuldade, jogando mal, a bola não andava… Foi um terror, mas ele passa a primeira rodada. E ele foi crescendo durante o torneio, pegando confiança. Das quartas de final para a frente, com uma boa parte da confiança recuperada, desempenhando bem. Aí ganha o torneio e quando ele sobe na arquibancada, ele me dá um abraço e fala duas coisas na minha orelha: “Cara, treinar na chuva dá uma sorte, né? E não tem mais ninguém na minha frente.”

Faz sentido (risos)

Eu tinha certeza que ele ia falar isso. Aí acaba, vou pro vestiário, ele vem com o troféu, me dá um abraço, comemora estar na frente do ranking e tal… Eu abro meu iPad – já tinha deixado preparado – na última página do ranking da ATP. Não lembro exatamente quantos tinham lá empatados, mas era uma porrada de gente. Eu mostro pra ele e falo assim: “A fase de estudo acabou. Começa a pedir emprego aqui. Só tem 5 mil candidatos na minha frente.” Ele: “Porra, tu não vai cansar nunca?” No outro dia, eu estava 8h30min no café, ele chega todo arrumadinho e pergunta: “e aí, onde é que nós vamos treinar?” Foi uma semana bastante interessante. Para mim, mostrou o quanto e possível você não estar bem, mas saber das suas capacidades ou saber das capacidades do seu atleta e tentar tirar isso dele. É uma das grandes lições que ficaram para mim nessa campanha.

Qual a parte mais legal de ser técnico?

Acho que é passar informação. Lari me disse uma vez que o dia que eu estiver dentro de uma quadra de tênis passando informação para alguém e esse alguém executar aquilo e eu não me arrepiar, está na hora de parar. Isso é um teste que eu faço sempre. Ainda não parei de me arrepiar. Para mim, o mais legal é isso. Um dia, num café da manhã, o Felipe [Fonseca], do Daqui Pra Fora, vira para mim e diz: “Bocão, qual que é a tua profissão?” Eu: “Treinador de tênis?” Ele: “Não”. Eu: “Técnico de tênis?” “Não.” “Professor de tênis?” “Não.” “Então tô mal cotado contigo, mas rebatedor, então?” “Não.” “Boleiro? Não sei o que tu quer dizer!” Ele: “Bocão, nunca te esquece que tu és um educador e através do tênis, se tu for trabalhar com juvenis, tu estás educando eles para o futuro. E quando tu estás trabalhando com um profissional, tu também estás educando esse profissional a ter melhores rotinas e alcançar o melhor dele. Tu és um educador. Essa é a tua profissão.” E a partir daquele momento eu adotei isso, essa nomenclatura. Agora eu te repito isso: “O que eu mais gosto é de ser educador.”